27 março 2009

SINTOMA

O tempo come nossa vida. As horas querem devorar minha inspiração, meus sonhos, meus sons, comer os sabores, os olhares. O câncer come o corpo, o dinheiro come o tempo.
Pois é... chega um tempo em que a gente tem que virar gente grande, abrir os braços à nova vida e sugar cada mísero segundinho que ela reserva, cair de cabeça no mundo, olhar pro abismo, o infinito espaço entre um inesperado início e um suposto existente fim.

Chega o dia em que a gente olha o guarda-roupa, querendo procurar uma pantufa, uma boneca, mas só encontra roupas de trabalho... cabides e cabides de aulas a preparar. A gente olha pras linhas do caderno, famintas de poesia, loucas por serem história de um dia que acordou e dormiu, mas são apenas rascunhos de quilos e quilos de exercícios de física, quilos e quilos de rabiscos de monografia... o giz pastel está lá, na gaveta, louco pra deslizar no canson, os pincéis estão secos, sedentos de tinta e tom...

Os dias nos invadem com seus minutos preciosos, tão contados, as horas são infinitas e tão efêmeras, uma vida toda a tiquetaquear apressada... as traças comem meus livros e poemas, a ausência come as cores na caixa de lápis, os cupins comem meu violão, enquanto as horas comem meu dia, enquanto a pressa come meus olhares para o mundo...

E é tanta fome, é tanta sede, a desta vida pequena de gente grande, que eu queria é me manter acordada, não dormir nunca... Medo. Não de ser gente grande, não do trabalho traçando nas horas uma vida passo a passo conquistada, mas medo das traças, dos cupins, da pressa. Medo do tempo que se arremessa, das horas preenchidas demais.

Não adianta, a gente tem, um dia, que arrumar o armário. Tirar o mofo da infância, deixar a criança correr livre e feliz na memória, destrancar a intensa beleza da juventude, desconstruir os castelos, as redomas, desconstruir esse medo, essa angústia.

Vestir os dias com nosso melhor sorriso, com o olhar ainda curioso de criança e com a paixão frenética da adolescência. Vestir nossos pensamentos com a alegria do olhar de cada aluno, de cada pessoa que passeia na praça com o cachorro, do jardineiro que assovia para si mesmo, do ensaio de saxofone numa casa desconhecida... Se é pra crescer, que cresçamos então com tudo o que somos e sonhamos, encontrando uma manhã pra desempoeirar o violão, uma noite pra abrir um neruda, ao acaso, encontrar na madrugada uns minutos pra escrever uma página de diário... enxergar morangos silvestres na escalada árdua, sentir o sabor da liberdade na rigidez do cotidiano, a brisa das cores no cimentado do mundo, perceber a beleza das horas, preenchidas, avulsas, chefiadas, caminhadas, trabalhadas, beleza nas horas de insônia, de trânsito, de amor, de saudade, de conquista, de tédio...

Que a vida, inevitável, suprema, escandalosa, sutil, nos tome... nos desequilibre, nos desesperance, nos devore, nos supra... que a vida nos reconstrua e invada com todos os seus sintomas... e que nos entreguemos por inteiro, sempre! Feito a criança que conversa com a boneca feita de pano de prato, que corre na rua sem saber muito o porquê... feito a menina-moça que sonha e chora pelo amor da sua vida, que imagina conversas à noite e que tem a lindeza da vontade no olhar, junto às pernas bambas e ao estômago revirado no apaixonar...

Que sejamos, então, um prato cheio pras horas, pros minutos, com uma vida repleta de segundos preenchidos com amor à própria vida e ao próprio tempo. Que os sintomas de cada dia nos marque pra sempre, mas que sejamos uma nova pessoa a cada amanhecer. Que sejamos invadidos pela sede e pela fome, ao tempo que invadimos o mundo e nele deixamos o nosso sintoma que é viver.